Carta aberta do Brasil para a Europa

Reflexões a partir do Encontro Reverbe/2022

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Curitiba, Brasil, janeiro de 2023

Começamos esta carta buscando abrir um diálogo sobre questões latentes há muito tempo, que nos parece que não podem mais ser adiadas. Um diálogo sobre as diferenças e sobre situações desconfortáveis e recorrentes que precisam ser revistas, inclusive dentro da Rede Magdalena. Em nossa primeira edição do Encontro Internacional de Mulheres da Cena - Reverbe, em Curitiba, Brasil, o racismo aconteceu e gerou movimentos, como o cancelamento de um espetáculo, a abertura de uma roda de conversa e a escrita, a muitas mãos, desta carta.

Por aqui todas fazemos parte desta grande rede de mulheres de teatro, que existe há tantos anos chamada The Magdalena Project. Nos últimos anos a rede se ampliou muito, em especial na América Latina, trazendo uma imensa variedade de festivais em países como Brasil, Chile, Argentina, Peru, Colômbia e Equador. Este crescimento possibilitou muitos intercâmbios, contribuindo para a manutenção da rede, que segue se multiplicando e se atualizando. Tais festivais ofereceram muitos convites também a artistas europeias para compartilharem seus trabalhos, visões e visitarem estes países. É inegável a riqueza gerada pelo encontro de culturas e o quanto a rede se fortalece justamente por esta pluralidade.

No entanto, alguns temas estão pulsando há algum tempo e merecem uma reflexão mais direcionada e profunda para avançar no que pode ser uma rede internacional de mulheres das artes cênicas, que tem a ver com referências, visões de mundo e como se expressar em diferentes contextos, respeitando o lugar onde se está. Esta carta é um convite para a abertura de espaços possíveis de (re)existência.

Para tanto, é importante contextualizar de onde falamos. Quando os portugueses invadiram o território brasileiro em 1500, encontraram por aqui povos indígenas de várias etnias, com culturas, comportamentos e idiomas distintos. Foram recebidos, convidados a entrar. Eventualmente, os recém chegados, os exterminaram ou escravizaram a todos. A professora da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (UNIFESSPA) Flávia Lisbôa sinaliza "É importante não perder de vista que a dominação europeia é uma ação imperial para ampliar seus domínios territoriais, a tomada do território hoje chamado Brasil nada mais foi do que o roubo dos territórios indígenas, imputando aos nativos a condição de inimigos de guerra, um povo “conquistado” por meio da extinção/aniquilamento a partir de 1500 e que nunca cessou, ressalvando os refinamentos ocorridos na forma como o genocídio se perpetua na atualidade.” (2020)

Mais tarde sequestraram e trouxeram para cá à força por aproximadamente 300 anos, nações africanas para trabalhar nas ricas terras brasileiras. Indígenas, africanos e os invasores brancos constituem a essência do povo brasileiro, a tão falada miscigenação, construída pela violência e por um projeto político de embranquecimento do povo brasileiro. Até hoje a maioria da população negra está nas periferias, constituindo a camada mais pobre do país. Nas palavras da importante pensadora brasileira Lélia Gonzalez, "o racismo latino-americano é suficientemente sofisticado para manter negros e índios na condição de segmentos subordinados no interior das classes mais exploradas, graças a sua forma ideológica mais eficaz: a ideologia do branqueamento. Veiculada pelos meios de comunicação de massa e pelos aparelhos ideológicos tradicionais, ela reproduz e perpetua a crença de que as classificações e os valores do Ocidente branco são os únicos verdadeiros e universais." (1988, p. 73).

Professores conscientes do seu papel de educadores, realizam narrativas mais coerentes em relação ao processo de colonização no nosso país, mas ainda hoje, nas escolas brasileiras, se ensina sobre o "descobrimento" do Brasil, ao invés de se falar de invasão e genocídio. Como se ensina sobre este período histórico na Europa? O que se ensina sobre este grande continente europeu que "conquistou" grande parte do mundo? E o que ensinam nas escolas europeias sobre a América Latina?

Pode parecer muito distante a invasão de 1500, que não temos responsabilidade sobre o que passou há tanto tempo. No entanto, resquícios do pensamento colonial estão em todas as partes, na estrutura das sociedades. Há uma raiz profunda que se revela nos pensamentos e atitudes até hoje, em comentários preconceituosos e descuidados, associações ofensivas, impaciência com as diferenças, desdém em relação a outras culturas, como por exemplo quando se fala do "Sofrimento da América Latina", sem uma reflexão de onde vem este choro. Temos que considerar que existe uma história de muito sofrimento de fato, construída, imposta, repetida e reproduzida em moldes mais refinados e camuflados, na relação entre opressores e oprimidos, colonizadores e colonizados. São situações que, muitas vezes, passam despercebidas porque são veladas por um sistema que garante a manutenção do privilégio branco e a hegemonia europeia e estadunidense. Para além disto, é muito comum que, quando detectado o teor opressivo de uma fala, haja uma recusa do reconhecimento desta agressão, uma esquiva em fazer uma auto reflexão, de escutar e se rever. E aí está o ponto: a não compreensão da bolha em que estamos envolt@s de acordo com nossa realidade e privilégios, e o quanto pode ser danoso deixar passar uma atitude racista, preconceituosa, “esquecer” um comentário que podemos achar ter sido feito sem intenção nenhuma de maldade, mas que reforça e perpetua um modelo de sociedade que não queremos mais, e que tanto fere pessoas. Nossas “boas intenções” não servem para nada!

Como mulheres de teatro temos a oportunidade de reverberar algo diferente e desconstruir o racismo estrutural do qual todas somos descendentes, porque o mundo quer e precisa mudar.

Hoje no Brasil, racismo finalmente é crime (Lei 7.716). Passível de prisão. Não é drama. Não é bobagem. Não é brincadeira. Não é exagero. É crime. Esta conquista reflete uma necessidade urgente de repensar os valores de um país que foi edificado no sofrimento de muitos.

A reflexão que nos parece importante direcionar aqui, é que quando estamos em outro território que não o nosso, temos que ter noção de onde estamos pisando e nos colocarmos em posição também de aprendizado e escuta. Sabemos que situações semelhantes aconteceram em muitos festivais Magdalena pelo mundo afora, não só no Brasil.

Esta carta é uma ação para endereçar assuntos urgentes em nossas culturas de diferentes formas. Deveríamos nos sentir protegidas na rede, com suporte e sentimento de comunidade, mas há muito que se trabalhar também aqui e nem todas sentem este acolhimento e proteção. Há muito para se olhar com profundidade e não podemos permitir que a própria rede espelhe este mundo que reiteradamente lutamos para mudar.

Precisamos estar atentas e direcionar o assunto sem medo e sem censura, para que possamos dar um pequeno passo adiante e, de fato, incluir a tod@s. O que em algum momento foi normal dizer, fazer, hoje não é mais aceitável. Sem transformação não há continuidade e não podemos mais adiar essa revisão/reparação histórica. O que para um@ pode parecer um drama ou brincadeira, para outr@ é racismo recreativo* e questão de luta, resistência e sobrevivência física, mental e emocional.

Esta carta é também um convite para conversar, para debater estes temas e possíveis ações, escutarmos umas às outras e caminhar juntas. Convidamos você para participar do debate neste forum no site do Magdalena Project (instruções for how to participate are on the forum). Seguimos Reverberando com desejos que o efeito cascata - RIPPLE EFFECT’ desta carta contribua para a transformação do mundo que ansiamos criar e viver.

Assinado por

Janaina Matter, Greice Barros, Naná Sodré, Stela Fisher, Juliana Capilé, Tatiana Horevicht

*Termo usado pelo Doutor Adilson Moreira que se refere a “piadas” e “brincadeiras” que, aparentemente, são inofensivas e/ou um meio rotineiro de interação social, mas que possuem um cunho racial em que associa as características, físicas e culturais, das pessoas negras ou indígenas como algo inferior ou desagradável, em relação aos comentários racistas feitos em tom de brincadeira, com "boa intenção".

Referências: 

inglês:

Reverbe 2022. Photo: Eli Firmeza

Reverbe 2022. Photo: Eli Firmeza